sábado, 1 de dezembro de 2012

“A Máquina de Fazer Espanhóis”, de Valter Hugo Mãe

Por estes dias dei comigo a sair das rotinas para entrar noutros universos e dou de novo de caras com a prosa de Valter Hugo Mãe, aquela com quem já me tinha cruzado n’ “O Apocalipse dos Trabalhadores”. Desta vez entrei no universo d’ “A Máquina de Fazer Espanhóis”, que é uma aventura trágica e divertida ao mesmo tempo, sem deixar de ser irónica e que tem como ponto central o sentimento dos mais velhos da vida. Sentimentos soltos, num universo que é um Lar de Idosos, (Feliz Idade) um lugar onde António Silva, de oitenta e quatro anos se repensa para reincidir uma vida ou mesmo mudar, no dia em que violentamente o seu mundo se transformou. É no fundo uma história simples de quem, no momento mais árido da vida, se surpreende com pequenas manifestações sentimentais.
Quase sem se dar por isso, vamos assistindo a um jogo de acidentes e peripécias que desviam a personagem de atingir o seu objectivo, atrasando-o, jogando-o por caminhos e situações insólitas e por sentimentos e estados interiores que lhe são totalmente desconhecidos, forçando-o a ceder ou a resistir, a recuar ou a avançar, a hesitar e a conciliar.
O lugar onde se desenrola a acção, já se sabe, é um Lar de idosos “Feliz Idade”, qual depósito de farrapos, para onde se vai, para não mais sair a não ser pela morte, a caminho de cemitérios diferenciados. Porque até na morte há diferenças de classes! Simultaneamente, ficamos também a perceber, dolorosamente a perceber, como é que é ser velho nos dias de hoje. Como é perder a dignidade, quando a sociedade os chuta para fora do jogo.
Com a entrada de António Silva no Lar, começam a desfiar histórias de vidas, vidas que vão trocando de quartos, numa magnífica metáfora da própria vida, como se os “inquilinos” do Feliz Idade, aos oitenta anos, regressassem ao banco de suplentes depois do aquecimento, não havendo no entanto nada a seguir: nem jogo (a vida?), nem jogadores (os que vão primeiro?), nem sequer o árbitro (Deus?). Apenas o Cubillas na parede do quarto da D. Leopoldina.
A dada altura, o senhor Silva retracta bem o seu sentimento, que é o sentimento central de todo o romance - «pegaram em mim e puseram-me no lar com dois sacos de roupa e um álbum de fotografias. foi o que fizeram. depois, nessa mesma tarde, levaram o álbum porque achavam que ia servir apenas para que eu cultivasse a dor (…). depois, ainda nessa mesma tarde trouxeram uma imagem da nossa senhora de fátima e disseram que, com o tempo, eu haveria de ganhar um credo religioso, aprenderia a rezar e salvaria assim a minha alma.»
Um dos pontos altos do romance é o diálogo delicioso entre o senhor Silva e o senhor Pereira, quais traquinices de dois velhos de oitenta anos, de mãos dadas a espreitarem de madrugada os quartos uns dos outros, como se regressassem a uma infância saudosa. É que, as pessoas sendo diferentes, reagem normalmente de maneira diferente e o medo da morte pode levar a sentimentos semelhantes.
Seja como for, no texto está lá tudo: as memórias de supostos “fantasmas”, da ditadura, do fanatismo do futebol, da igreja, do pessimismo com que os portugueses parecem não conseguir sobreviver. E estão lá os fantasmas dessas memórias, sem lençol na cabeça, bem espremidos, como que servidos num prato em que cada um só come o que quer.
No processo criativo, o autor define o lar como o espaço da acção, de onde emanam todos os rituais, pensamentos e demais orientações e movimentações. De onde partem as simbologias dos objectos e das memórias, e onde as palavras e sons da lida nos quartos e do imaginário ganham fôlego, do pouco que resta da vida.
Neste romance, e para quem leu outros anteriores, nota-se um afinar e consolidar de estilo, de escrita e de tema. E aí não faltam as fatalidades do povo português “fomos sempre um povo de caminhos salgados. ainda somos um povo de caminhos salgados. isto é coisa para nos amargar o sangue…”. Ou seja, apesar do titulo, neste livro, Valter Hugo Mãe escreve sobre Portugal e acima de tudo sobre o que é ser português, ou de “como por vezes Portugal parece ser uma máquina adormecida no tempo e que acordando de um marasmo sonolento só sabe fazer espanhóis”.
No fundo, esta máquina tritura por vezes tudo o que um “bom homem” tem ainda para dar ao seu país, esquecendo por vezes o que devia ter dado quando teve oportunidade.
Contudo, “a máquina de fazer espanhóis” é um livro optimista ao tornar possível no nosso pensamento a ideia de que podemos, através de uma catarse, expulsar alguns dos males com que vivemos, mas que fazem parte da nossa herança social e cultural do século passado.
“A máquina de fazer espanhóis” é o quarto romance do autor, os outros três são – “O Apocalipse dos trabalhadores” (2008); “O Remorso de Baltazar Serapião” (2006) e “O nosso reino” (2004).
Para quem nunca leu Valter Hugo Mãe, a primeira impressão que fica é a de que não há letras maiúsculas. É tudo seguido, num estilo novo e porventura controverso, mas não menos interessante e refrescante. José Saramago, chamou à escrita de V.H.M. um “tsunami” não no sentido destrutivo mas da força”. Por isso, não é de estranhar o facto do romance “o remorso de baltazar serapião” ter sido o prémio literário José Saramago - 2007. Ou seja, estamos perante um fenómeno novo na literatura portuguesa, com esta inovadora forma de escrita, polida, refrescante e rica, de Valter Hugo Mãe, um jovem de 39 anos, nascido em Angola, morador em vila do Conde, Caxinas, terra de sofrimento, ali, onde uma mãe vê os filhos e o marido levados pelo mar, para sempre, mas que não desiste de viver, de lutar e resistir.
Valter Hugo, que vive em Vila do Conde desde 1981, é licenciado em direito, é pós graduado em literatura portuguesa moderna e contemporânea.
 
* Crítica literária feita no âmbito da cadeira de Processos de Criação Artística, no Mestrado de Animação Artística, sobre o livro de Valter Hugo Mãe, que ganhou agora o grande prémio Portugal Telecom

1 comentário:

Sérgio Reis disse...

Belo texto, apanhando o essencial da história e algumas das particularidades da escrita de VHM, pseudónimo de Valter Hugo Lemos. Já li o livro e também gostei. Gosto dos livros que trabalham a escrita, não se ficam pela história, e que me deixam algumas frases e imagens na cabeça, assim como a vontade de ler mais coisas desse autor. O assunto dos espanhóis parece-me um pouco forçado mas deu um título fantástico. Há hoje muita gente a escrever muito bem em Portugal,com destaque para um grupo de escritores novos, já com obra de vulto e premiada, que estão a revolucionar a escrita em português e a mostrar no estrangeiro que a literatura portuguesa tem qualidade internacional, resiste a qualquer tradução (veja-se a disparidade de países que já traduziram Saramago ou Gonçalo M. Tavares) e recomenda-se vivamente. Para além de VHM (n. Angola, 1971) destaco Gonçalo M. Tavares (Angola, 1970)e Afonso Cruz (Figueira da Foz, 1971. Os dois primeiros foram elogiados por José Saramago. Tal como VHM, Afonso Cruz também é artista plástico, além de músico. Quanto aos prémios literários, eu diria que alguns deles parecem máquinas de fazer escritores, especialmente quando o prémio é luso-brasileiro ou europeu...
Sérgio Reis