domingo, 8 de março de 2015

Estranhos dias à janela, comentários ao livro



Intervenção do Presidente da Câmara de Seia
Carlos Filipe Camelo


Fui convidado para convosco partilhar a apresentação do livro “Estranhos Dias à Janela”, do Mário Jorge.

Sabia que me seria pedido para nesta noite proferir algumas palavras.

Por isso, e ao usar da palavra nesta cerimónia, posso correr o risco de, no vosso pensamento, e aprioristicamente, aqui ou ali, ser acometido de alguma tendenciosidade ou parcialidade, dada a relação de forte amizade que cultivo com o autor..

No entanto, mesmo correndo esse perigo, aceitei, como aliás o prova a minha presença aqui.
Devo-o ao respeito e consideração que tenho pelo Mario, mas também por todos aqueles que acharam por conveniente presenteá-lo com a sua presença na noite de hoje.

Como todos sabem tenho com o Mário Jorge privado de forma diária, muito de perto, há cerca de 30 anos.

Têm sido, como todos possamos estar a pensar, e como costumo afirmar, anos de complementaridades e de cumplicidades, nas muitas ações consigo partilhadas.

É sabido que a identidade de cada um de nós se  gera num recipiente onde diversos ingredientes se misturam mais ou menos harmoniosamente, independentemente da ordem em que os possamos citar: a família, a terra, os amigos, a cultura, a profissão, os valores, o respeito pelos costumes e tradições, as motivações fundamentais de uma vida, a busca da verdade sobre si próprio.

Perante nós temos uma pessoa serrana, do Sabugueiro, das Beiras e Serra da Estrela, numa terminologia muito atual, de origem familiar de cultura clássica, pessoa firme e convicta dos seus ideais, pródiga em amizades duradouras, amante da vida e do respeito pelo próximo.

São, pois, muitas as dimensões observadas que nos oferece a sua personalidade e que dá sentido à sua vida onde encontrei, em continuidade, o sorriso, a amizade, o conselho, a disponibilidade, a solidariedade, a seriedade, a camaradagem e o altruísmo.

No entanto, e para além de tudo, todos aqui na sala conhecerão, certamente, o autor, da sua relação com a escrita, na imprensa, no cinema e nas artes, na cultura, no associativismo, na política ou na economia social.

Não vou por isso prender-me em mais considerações diretas relativamente ao Mário Jorge…

Antes, e como é meu hábito e preocupação, lembrar-vos que são momentos como este, que o nosso concelho produz felizmente de forma abundante, nas mais diversas áreas, que nos inspiram a celebrar a nossa comunidade e a assinalar as suas virtuosidades.

No fundo, evidenciar aquilo que temos de genuinamente bom: a capacidade e o conhecimento das nossas gentes, das nossas pessoas. Elas são sem dúvida o nosso maior ativo, porque despertam a energia cívica e social do nosso Concelho.

E o Mário Jorge é, sem dúvida, uma dessas pessoas singulares, que contribuem, com o seu empenho, para o crescimento e afirmação da nossa terra.

O seu percurso cívico, marcado por uma cidadania ativa é, de resto, bem revelador e um exemplo que é replicado um pouco pelos diferentes setores da nossa comunidade, que permitem que o Concelho se mantenha na linha da frente, reafirmando, simultaneamente a sua identidade.

Ao autor, os maiores êxitos, pessoais e profissionais saldado com um abraço forte e solidário do tamanho da nossa Serra da Estrela.

Muito Obrigado a todos.




Comentário 
de Maisa Antunes *

Estranhos dias à janela dá a ideia de abertura, uma abertura desafiadora, porque é preciso vencer o desafio de olhar sem culpa, e a astúcia de perceber uma saída aventureira, uma saída que quebra convenções [no sair], torna-se preciso arriscar um pulo para sair, ou arriscar-se assumindo outros papéis para olhar, para olhar-se, e encontrar este estranho que há em nós.

O livro traz a perspectiva de estar na fronteira entre o distante e o íntimo. Estranhos dias à janela contempla o fora para ver o que estar dentro. O ritmo das palavras com seus enunciados trazem os contrários sem estabelecer dicotomias, mas a sensação de incompletudes de complementaridade – quem é o outro que vejo? Eu próprio? E assim se torna um exercício de reflexos, um espelho.

É a janela do inesperado, e da espera paciente...

Estranhos dias à janela – Uma janela que abre fendas na memória para acessar as distâncias, com intimidade, e assim nos leva ao poema pessoano “navegar é preciso viver não é preciso”.

De cada janela em diferentes lugares do mundo: ruminações de perguntas, de questões de todos nós, respostas internas que generosamente inclui o outro, do outro lado da janela.

Estranhos dias à janela é uma janela ampla que se transforma em varanda e nos oferece um lugar para sentar... para tiramos “a pedra do sapato” e arrumarmos o pensamento.  

Estranhos dias à janela convoca filósofos/poetas que através da perfeição literária e poética expõem a imperfeição humana. E assim este livro nos coloca na ciranda da vida, trazendo as reflexões do quem somos e as ilusões que nos salvam.

Uma janela que é retrato, e sendo retrato revela-se também um auto-retrato. Assim este livro parece uma autobiografia de todos nós, digo, de cada um de nós.



*Maisa Antunes é doutoranda em Pós-Colonialismos e Cidadania Global – no CES – Centro de Estudos Sociais, da Universidade de Coimbra, com o projeto “A arte e a educação”; é colunista do Escrítica (www.escritica.com); e do Cidade do Anjo https://cidadedoanjo.wordpress.com; professora do Departamento de Ciências Humanas - Juazeiro, UNEB – Universidade do Estado da Bahia – Brasil.


Antevisão, 
de Sérgio Reis *

Doze anos decorridos sobre a publicação de “O Mundos dos Apartes”, fazia já falta um terceiro livro de Mário Jorge Branquinho, reunindo textos recentes, inéditos e dispersos, alguns dos quais publicados no seu blogue, Seia Portugal. Longe de ser uma mera coletânea de textos avulsos, “Estranhos dias à janela” reafirma o autor como perspicaz observador crítico do seu tempo e dos lugares, partilhando generosamente com o leitor o prazer da escrita e o seu entendimento do mundo – no sentido em que Kafka gabava a orientação recebida do seu amigo Oskar: "Tu eras para mim uma janela através da qual podia ver as ruas. Sozinho não o podia fazer." (Franz Kafka, Carta para Oskar Pollak).

Os últimos anos, de crise económica e aflição social, impuseram temas e reflexões a que Mário Jorge Branquinho não podia ficar alheio, como cidadão responsável e interventivo, preocupado com as condições de vida das gentes da sua terra, região e país. No entanto, não se procure nestes textos aguilhões panfletários para além da reflexão crítica sobre o contexto em que se desenvolve o atual mal-estar social e político, em parte provocado pela crise económica mas também fruto da excessiva confiança geral no funcionamento das instituições democráticas. “Estranhos dias” que cada qual pode observar, analisar e comentar do seu ponto de vista, da sua “janela”, ou de várias perspetivas e outras tantas “janelas” abertas pelos jornais, televisão e Internet para um “país em bolandas”, com toda a gente “a querer pular a cerca da inquietação” (O mundo em bolandas). Basta recordar a importância da imprensa na vida de Mário Jorge Branquinho (fundador, administrador, diretor e colaborador de jornais locais e regionais) e a relevância que concede à escrita, além da sua paixão pela fotografia, para exprimir ideias, sensações e sentimentos, integrando-se pelo mérito no colégio literário senense e na história recente da cultura em Seia.

O que diferencia principalmente este livro dos anteriores, cuja leitura se recomenda para melhor apreciação do caminho percorrido, é a inegável dimensão poética da escrita. Uma escrita apurada, culta, que se desdobra em significados e sentidos. Uma escrita “em arco”, inspirada e inspiradora, cuja musicalidade faz lembrar o jazz poetry e o rap, ecoando ao longo da frase e da superfície do texto. Induzindo viagens, pelas “janelas de emoções” e muito mais além, até ao âmago do problema, ao “busílis da questão”, o “centro da periferia”. “Escrever em arco é partir, andar por lá, em aventuras de escrita (…) e voltar são e salvo, sem hipotecas narrativas. (…) É ir a muitos mundos e voltar (…), tantas vezes sem sair do lugar, sem estagnar!” (Escrever em arco). Viagens no sentido de incursões, observações avançadas, visitações, mas também “desviagens” – esses desvios à vista que permitem encarar novos e velhos problemas de perspetivas inusitadas, emboscando-os mais à frente na curva do tempo, para os resolver, muitas vezes sem querer ou por acaso (como no serendipismo?) pois “nem sempre vamos aonde queremos” (Partir daqui, a partir de agora). Mas quando voltamos de uma viagem, somos ainda nós ou já outra pessoa? Para Miguel Torga, viajar “é deixar de ser manjerico à janela do seu quarto e desfazer-se em espanto, em desilusão, em saudade, em cansaço, em movimento, pelo mundo além" (Diário, 1937) e Mário Jorge Branquinho conclui justamente que “só não muda quem não acompanha nem quer sair do lugar” (E tudo mudou).

As fotografias que o autor articulou com os textos, pontuando o livro, permitem traçar o mapa das suas aventuras periféricas, como cidadão do mundo, “no cruzamento com outros, em ruas plácidas, ou em caóticos labirintos” (Inventário de sentimentos), captando momentos específicos e não apenas a memória dos lugares. Espreitando pela janela da máquina fotográfica as janelas do mundo, através das quais se avistam paisagens humanas, paraísos artificiais e outros abismos, “o paradoxo ilusionista em que se vive” (Olhar langue), os “novelos górdios” do nosso tempo e não apenas do nosso espaço e lugar. Os artistas, grosso modo, pintam as janelas nas fachadas, como olhos na cara das casas, mas os fotógrafos têm essa vertigem especial de perseguir imagens através de vidros, lentes de máquinas e janelas, aproximando-se imprudentemente da realidade – e por isso a fotografia é mais objetiva que a pintura. Mário Jorge Branquinho é fotógrafo amador (no mais autêntico sentido do termo “amador”, ou seja, “aquele que ama”) com diversas exposições e prémios no currículo, e as imagens soberbas que pontuam os espaços mentais do livro vão muito além do simples registo fotográfico ilustrativo, espicaçam a imaginação e a interpretação, desdobram-se em sugestões de narrativas.

Cada uma dessas imagens vale autenticamente por mais de mil palavras, procurando as legendas nas frases dos textos, tudo articulado com a engenharia possível numa obra desta natureza. Dois livros num só, como dois autores num só, que se completam e esclarecem mutuamente – um pouco à semelhança de Fernando Pessoa, poeta admirado por Mário Jorge Branquinho, que o evoca discretamente ao longo de “Estranhos dias à janela”.

O livro termina com palavras de incentivo, encerrando com a curiosa sugestão do fim de ano em agosto, um mês de calmaria propício a balanços, para começar do zero depois das férias, frescos e com ganas de refazer tudo um pouco melhor. “Afinal, porque é que não vale a pena, se nunca houve tanto progresso?” (O estado psicológico da nação. Pela positiva). “Em tempo de crise, de falta de muito, sobra a criatividade e a ousadia de fazer mais para fazer sentido” (Balanços). Assim seja.

*Professor e artista plástico, de Seia



 À janela amanhece
  por Alexandre Sampaio*


à janela amanhece
e o dia regressa
num turbulento esplendor

as sombras recolhem aos pés
primitiva casa de penhor
furtivas e insinuantes
e toda a noite trémula
orvalha

amanhece
irremediavelmente

a mesma luz cintila
e refracte
mas não reconheço em que tempo incide
a janela medeia o silêncio atraiçoado
e já o rouxinol que o canto segue

também tu querias que eu fosse pássaro
nascente
água desmedida que sobe ao olhar
e se desmancha sobre a mesa

mas partiste
ainda Endimião dormia

na primeira névoa
hiberna ao longe o estio da cidade
e são estranhos os dias à janela
que pairam sem florir

por isso o centeio dança com as mãos
no vidro frio da retina
e quando negras nuas se descobrem
são já as vozes dos camponeses
que as colhem

é o novo dia coroado
novo mastro peitoril

o vento ondula docemente o milheiral
(ressoa um sino na memória)
o pinhal emerge sumptuoso
(brisa de rosmaninho sobre a pele)
o rio espreguiça o seu ofício líquido
(verbo que humedece)

desenho no mapa embaciado
efémeros continentes
novas atlântidas e constelações
gestos e rotinas
que a claridade consome

gente que ri
gente que vê
gente que dá
gente que crê
gente que dorme
gente que morde
gente amontoada
a paisagem sua

abro a janela
(e digo-me adeus)



* Alexandre Sampaio, encenador, performance