Diário de quarentena 1
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Já lá vai mais de um mês. Confinamento forçado, como quase todo o mundo.
Como nunca antes visto ou imaginado. Em casa, dia após dia, em tarefas
domésticas, em teletrabalho, a lavar sistematicamente as mãos, refrescando a
alma, a lavar loiça, a colocar mascara, a escrever, a ler e a ouvir, a proteger
os mais velhos na distância, sem abraços , a tentar perceber, a ver notícias
repetitivas, e contabilidade de mortos e feridos e a repetir gestos mínimos por
metro quadrado. A pensar se não é tudo ficção, assumindo a constatação de que
afinal isto tinha de dar-se.
O mundo estava a ficar perigoso demais, e há muito se pronunciava o velho
jargão de que "Isto um dia rebenta"!
O mundo abateu-se sobre as nossas teimosias e por força disso está agora o
conta-quilómetros a colocar-se a zero, para começarmos tudo de novo. Ou não, e
isso é ainda mais intrigante. Pode tudo não passar de um susto, quando se
inventar uma vacina, quando se inventarem desculpas para voltarmos à louca
corrida em direção a novo abismo de consumismo desenfreado e outros atentados à
nossa casa comum.
Meio alheios ao que nos espera, seguimos, na quietude da casa, entre o
quarto, a sala e a cozinha. Um dia de cada vez. Lavamos loiça, limpamos o pó,
passeamos o cão, ouvimos as notícias, contamos mortos e ensaiamos o regresso ao
trabalho. No pico da saturação, à procura de um planalto para as nossas
emoções, não baixamos a guarda. Afastamos euforias, porque o caminho ainda é
longo e salvando a pele, queremos salvar o sustento, trabalhando.
Serenos, acendemos a vela da esperança, na certeza de comemorar abril, na
estranha liberdade confinada ao tempo que vivemos.
Mário Branquinho, 19 de abril 2020
Diário de quarentena 2
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Em teletrabalho, ou no regresso ao
trabalho efectivo, os dias passam, ora lentos, ora depressa. Afinal isto já
leva tempo demais. Começa, no entanto, a levantar-se o cerco, tenuemente,
deixando meio mundo, meio confuso, meio intrigado, de como será o regresso à
normalidade, se voltar a haver normalidade.
Há mais carros na rua e pessoas a
circular e na televisão dizem que a curva continua a baixar. Ergue-se a
esperança. O perigo dos Lares de idosos continua a pairar, apesar de não se
baixar a guarda.
Há um senhor que diz que o 25 de abril
está a dividir os portugueses e isso é mau. É um feriado para celebrar a
liberdade recuperada em abril de 1974 com a revolução dos cravos, a agora, caiu
o caos da celebração, com tudo preso em casa e meio mundo indignado porque se
chegou a isto. Sem necessidade. O melhor é no sábado, combinar-se uma hora e
virmos todos à varanda ou à janela e cantarmos o Grândola Vila Morena.
Diz no noticiário que a Espanha é o
terceiro país do mundo com mais casos a seguir aos Estados Unidos e Itália. Que
no Brasil está um louco no Palácio do Planalto, uma espécie de Manuel Joaquim
das Couves a envergonhar o seu povo e a colocar vidas em perigo. E nasce um
movimento para o expulsar de lá.
Nas ruas à noite, na minha zona,
circulam mais gatos que o habitual. Vai a gente colocar o lixo e alguns felinos
mansos e ternos, seguem-nos, como se fossemos os donos. Será do tempo, ou
andarão angustiados pelo desânimo dos verdadeiros donos?
Leio no Diário de Noticias que o governo
e a Santa Casa vão dar dinheiro para ajudar a manter os jornais do país e que
se for à proporção de leitores, o CM será o mais beneficiado. Apesar das
mentiras que diz e das perseguições que faz, diz o texto que leio. Não é justo!
O responsável das pequenas empresas diz que está a haver demora na libertação
de empréstimos e isso pode levar à ruína muito negócio e criar muito
desemprego. Continuamos na ponte entre salvar vidas e salvar negócios. Não é
fácil, mas sabíamos que isto ia doer. Está a doer e não se sabe quando e como
acaba.
Há dias que não se pode sair de casa e
eu só tentei ver o que se passa ao redor.
Mário Branquinho, 20 de abril de 2020
Diário da quarentena 3
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Por estes dias até perdemos a noção dos
dias da semana. Mais um dia e muitas historias. A novela da atualidade é a da
comemoração do feriado do 25 de abril no “confinaParlamento”. Já vai com muito
enredo e no episódio de hoje soube-se que antigos presidentes não vão e que
outro vai contrariado, e que o ajuntamento será menor. Não se percebe como
aceitam lá pessoas com mais de 70 anos!
Fora disso, ouvimos dizer que quem se
safa na pandemia são as grandes superfícies, que não param de vender e de
subir. Os pequenitos dos produtores não, afundam-se. Fazem falta campanhas de
promoção dos produtos da agricultura familiar. Estará na hora de abrir os
Mercados Municipais, para ganharmos todos. E amanhã é o dia da terra.
O que não está certo á a publicidade
enganadora do Pingo Doce, que ainda por cima, não tem pingo de vergonha, porque
ganha cá e paga impostos na Holanda.
Espantoso é o consumo de combustíveis a
cair vertiginosamente. Fechados em casa, deixamos de andar de carro e as
fábricas, pouco trabalham. Na América já pagam 37 dólares o barril a quem
quiser ir lá carregar. Mas não parece haver interessados. A esmola ´é grande, o
pobre desconfia. Não será fácil, difícil será mobilizar cântaros e cisternas.
Na televisão portuguesa, ou melhor, em
todas, o ministro da economia, Siza Vieira, diz que estamos perante a mais
violenta contracção da história da humanidade. Oxalá das contracturas nasça a
Esperança!
Enquanto isso, o presidente brasileiro
decidiu juntar-se a uma manifestação que pedia uma intervenção militar para
derrubar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal Brasileiro. No mesmo dia
especula-se que o líder da Coreia do Norte estará muito mal de saúde, e que um
controverso virologista francês, premiado pela pesquisa sobre o HIV, acredita
que o vírus saiu de laboratório em Wuhan, na China.
Que diremos nós, no meio deste caldo
caótico?
Lavamos mãos, colocamos máscaras,
coçamo-nos com os cotovelos, fazemos ginástica em casa, inventamos ocupações e
dormimos mais que o costume na intranquilidade e na engorda dos dias. E fazemos
por esquecer que o mundo é cada vez mais um lugar estranho, que até Edgar Morin
diz que as certezas são uma ilusão! Serão?
Seia, 21 de abril 2020, Mário Branquinho
Diário da quarentena 4
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Continua o estado de alerta e o
confinamento.
Muitos de nós trabalham, outros
teletrabalham e outros não. A vida fica difícil, entre angústia e esperança,
até que isto passe.
Nas televisões debitam incessantemente
números de mortos e feridos, por países e por comparação. Em Portugal fala-se
de alivio, que só pode ser perigoso se baixarmos... a guarda. Para já há
restrições no feriado prolongado do 1º de maio. Não se pode ir onde se quer. O
25 de abril vai ser à varanda e o resto logo se vê.
Um senhor que falou agora na televisão é
apologista da abertura progressiva do setor económico, para isto não morrer
tudo. É preciso começar a desenhar o regresso a uma vida mais
"normal", com abertura de cabeleireiros, cinemas, ginásios, hotéis,
restaurantes, faculdades e creches, pelo menos.
Na televisão o Presidente da América
acaba de dizer que se as pessoas injetarem um liquido nas veias, limpam os
pulmões e manda-os apanhar sol. No Brasil o Presidente diz que não é coveiro e
o seu ministro da Justiça Moro, anuncia demissão e diz que Bolsonaro queria
mexer na Polícia Federal para ter acesso a relatórios de inteligência. Já se
fala em Petistas aplaudindo o juiz golpista.
Segundo os jornais, a Alemanha
prepara-se para uma segunda vaga do coronavírus que pode ser "mais dura
que a primeira".
Magia é acreditar num mundo melhor,
mesmo que ele piore a cada dia, como dizia o Outro. Isto não está fácil, em
tudo que é grande e no muito que é pequeno ou invisível. Anda tudo misturado,
nesta crise sanitária, económica e de petróleo. Só o ambiente melhorou. O céu
ficou mais azul, a água mais limpa e o ar mais respirável. Vamos ver onde isto
nos vai levar, mesmo parados em casa, ou no trajeto casa- trabalho, trabalho –
casa. E não está certo haver tanto cócó de cão nas ruas de certas zonas
residenciais ou o Zé Malhôa ver a GNR à porta, por dar música aos moradores da
zona.
Seia, 24 de abril 2020, Mário Branquinho
Prossegue este tempo historicamente
bíblico. E com ele assinalamos palavras novas e outras repetidas até à
exaustão. Coronária vírus, quarentena, pandemia, confinamento, isolamento,
contingência, calamidade, fadiga, covid, vírus , dgs, sms, oms, máscaras, viseiras,
ventiladores, luvas, álcool, desinfectantes, lares, velhos, idosos, curvas,
picos, planaltos, infectados, testes, testados, mortos, vacinas, matemáticos,
epidemologistas, videoconferências, teletrabalho, moratórias, lay off, take
away, encerramentos, cancelamentos, adiamentos, Trump, Bolsonaro, gatos,
caezinhos e por aí fora.
As redes sociais e as televisões
animam-nos e desanimam-nos, proliferam eventos virtuais, seguem iniciativas de
todos e cada um de sua casa e assim nos ocupamos. Falta-nos sol e sobra-nos
tempo.
As ruas continuam desertas, os
comércios, escolas e outros serviços fechados. Cresce-nos o cabelo, sobra-nos
tempo, falta paciência, falta negócio e dinheiro e adiam-se eventos. Aumentam
incertezas, espreitam esperanças, vive-se um dia de cada vez.
Não saímos à rua de cravo na mão, mas
saímos de máscara e estranhamente até entramos mascarados nos bancos e não
assaltamos. E num dia como hoje, vêm-nos à memória uma frase batida, como se
fosse o primeiro dia do resto das nossas vidas, por evocarmos a liberdade em
tempo de reclusão. Com canções de abril, do Zeca, do Godinho e tantos outros
que fizeram da canção uma arma e nós quase sem fazer nada.
Cresce o cabelo e cresce a ilusão de
ficarmos bem, apesar do medo, apesar do vírus, apesar dos chineses, apesar de
tantas palavras, apesar de tudo e até dos presidentes da América e do Brasil.
25 de abril 2020, Mário Branquinho