Trabalho de Sofia Miranda, Docente do Ensino Superior
Ler Mário Jorge convoca-nos a um
exercício de compreensão de um estilo singular fruto de uma dedicação quase
obstinada a uma espécie de catarse libertadora, pelo prazer e pela necessidade
de verter no papel as inquietações da alma. A evolução, quando confrontamos as
obras, é notória, pelos temas objeto da sua escrita, mas sobretudo pela escrita
de persi que o mesmo procurou refinar
através do tempo, recorrendo a uma maior abstração e ao emprego de termos que
nos convidam a uma constante decifração dos significados. As palavras,
escolhidas intencionalmente, encaixam umas nas outras como num puzzle, numa cadência menor ou maior,
consoante o ritmo que o autor lhes quis emprestar. E este é assumido pelo
próprio como algo importante na sua forma de estar no palco da escrita.
O primeiro livro, Sentido Figurado, publicado em 1996, marca
formalmente o seu nascimento no mundo literário, onde o mesmo sublinha a
insegurança inerente a quem se lança nestes desafios da escrita, sem saber ou
duvidando se os mesmos obterão concretização, ainda que não tenha
correspondência real porque a virtude mora lá e desde sempre. A obra é marcada
por um forte impressionismo, aliás recorrente ou inolvidado nas obras
seguintes, que o Branquinho assume pelo gosto, pelo prazer de viajar, de descobrir
ou redescobrir os locais, as gentes que marcaram o seu crescimento, numa paleta
de cores que vai fazendo questão de acentuar aqui e acolá, num exercício de
pura contemplação.
Como emerge através da personagem
central, “o contacto com a natureza, já se sabe, é o seu forte!” Tais lugares e
gentes constituem para o autor o seu porto
seguro, onde se sente bem, e a que tem necessidade de retornar. Ressurgem em imagens
associadas a expressões de cariz vincadamente popular e até brejeiro,
claramente assumidas, pinceladas por uma certa ironia, tudo emprestando à sua
escrita um caráter singular que não deixa o leitor indiferente, convocando-o a
vivenciar diferentes sentimentos.
A personagem Micas constitui um elo de ligação
entre os diferentes textos, bem conseguido, fazendo igualmente sobressair a
necessidade que o autor tem de regressar à sua condição mais básica, mais
elementar, e que constitui para si um porto seguro, como já referido, algo que
o devolve ao equilíbrio que o mesmo sabe poder perder no turbilhão da sua ânsia
de dizer. A mesma pode-nos ainda levar eventualmente à perceção da importância
do elemento feminino na sua vida. Sobressaem, aqui e ali, apontamentos
autobiográficos evidenciando uma personalidade inquieta, desafiadora, em
constante procura, ao mesmo tempo que se destaca uma necessidade reiterada de
racionalizar as emoções, as inquietações
e as constatações. Esta sua necessidade convive assim paredes meias com um lado
mais centrado nas perceções imediatas, mas em si mesmas insuficientes,
limitadoras.
A dialética é uma constante:
entre o ser e o dever ser; entre o pensamento e a concretização; o real e o
imaginário; o querer ser e o não dever ser ou dizer. Destarte, a angústia é
evidente e permanente em si, mas sem nunca o demover do seu propósito
desafiador ainda que isso lhe traga ou possa trazer dissabores. Reservado nas
demonstrações, introspectivo ou, como ele próprio diz, um “espírito solitário”, mas determinado a vencer-se, a ultrapassar
obstáculos, a ser o eu por si almejado através da sua própria revelação. As “fraquezas”
da personalidade não o limitam. Pelo contrário. A vontade fá-lo suplantar-se a
si próprio. Não receia as consequências do seu dizer: “ Indeciso, desconcertante
mas firme”. Entenda-se que a indecisão é apenas o ponto de partida culminando
necessariamente na firmeza do dizer e do fazer. Existe em si uma grande
necessidade de materialização, de concretização relativamente ao que diz. A sua
grande capacidade de trabalho é prova disso mesmo. Os vários palcos em que se
move constituem o suporte de um dizer com propriedade, de uma experiência
feita.
As motivações são muitas, mas
sobressaem temas ligados à política, à causa pública, aos valores sociais que
lhe são caros, fazendo da ética ou da falta dela o palco privilegiado da sua
crítica, aqui e ali, algo ou bastante mordaz, às vezes encoberta por uma ironia
subtil ou um humor desconcertante. Vejam-se as crónicas dedicadas aos
Presidentes.
Ainda que a escrita, em termos
formais, não seja o elemento mais trabalhado, deliberadamente, sobressai já
nesta primeira obra a vontade de se desafiar nas e através das palavras, para
emprestar ritmo ao texto, para se fazer ouvir, sublinhando sobretudo a vontade
de se revelar através da escrita, num exercício libertador inerente à sua
própria natureza. É um prelúdio, é uma chamada de atenção, convocando os
leitores para a leitura e o comentário que, de modo algum, farão obscurecer a sua
vontade, plena de capacidade, de alguém que já existe antes de afirmar a sua
existência. Diríamos que, mais do que o sentido figurado que nem sempre o é, o
autor fala-nos do “sentido das coisas”, ou melhor, do “estado das coisas” para
dar sentido à sua própria vida.
Na sua segunda obra, O Mundo dos Apartes, volvidos seis anos
sobre a primeira, a evolução é significativa, sobressaindo uma escrita mais
erudita, por vontade própria, mantendo-se, no essencial, as temáticas abordadas.
Nota-se um crescimento, uma maior maturidade fruto da vontade, da intencionalidade,
do afinco na procura, das experiências da vida, resultando numa maior
consistência ditada pela crescente segurança nas suas convicções e nas
perceções do que o rodeia, do seu justo valor.
Ler os textos ou crónicas nesta
fase é um exercício que nos convoca a todos a um esforço intelectual de
decifração e de ligação dos significantes perante os possíveis significados,
num jogo inebriante, que nos transpõe para um mundo quase musical, poético, que
as palavras transportam, recheado de subtilezas e levezas, envoltas, bastas
vezes, numa ironia estonteante ou desconcertante, ora nos prendendo ora nos
soltando. Citando as palavras de Fernando Marques Carmino, na obra em que
traduz Pierre Hourcade sobre o poeta Pessoa, é uma “prosa de sabor poético”. A
grafia e a fonética foram claramente e assumidamente trabalhadas para resultar
em textos algo mágicos, fazendo-nos sucumbir nos movimentos de uma dança de
palavras, tanto suaves como frenéticos, que nos fazem querer entrar no seu
mundo, como nesta frase que se transcreve: “São acelerações e mais acelerações.
Acordar a correr e correr para o banho, sem esquecer o esquentador e a toalha à
mão e avançar para o fogão, de fervedor na mão, beber de um safanão e sair ao
repelão.” Repare-se na cadência, no ritmo, também propositado, na rima
constante. Mas o autor não se limita à mera incorporação das palavras no texto.
Explica como chegou a elas, os seus possíveis significados, a sua posição,
enquadrando-as logo de seguida numa qualquer realidade que o leitor facilmente
reconhecerá. Veja-se o texto sob a epígrafe “Palavras ao Vento”.
A personalidade marcante do autor
trespassa as linhas do tempo sem sucumbir em nenhuma delas, para dar lugar, no
entanto, a novas composições e construções. A inquietação, porque lhe é
inerente, mantém a sua centralidade nos textos, reforçada no seu vigor, na
vontade de ir sempre mais além, de se superar, provocando e apelando
concomitantemente à reflexão e à intervenção do leitor. Exercício sistemático,
paradoxalmente solitário, pois as respostas chamadas à colação sabe-as o autor
de antemão. Também como ali, aqui, muitas das vezes é apenas para sossegar a
alma. A esperança reside dentro de si no sentido de que algo possa mudar para
melhor, se houver reflexão ou consciência das verdades que se impõem,
recusando-se, de forma quase obstinada, à aceitação passiva de um status quo. Espera assim não “pregar aos
peixes” como Santo António, ainda que o próprio disso faça graça.
O autor é ou continua a ser um
observador constante e atento da sua gente e do seu quotidiano, da sua terra,
defendendo intransigentemente, porque lhe correm na alma e no corpo, os valores
a esses lugares comuns associados, sempre implícitos e explícitos na obra, recusando
o seu esquecimento, por vezes travestido de calorosas palavras circunstanciais
proferidas por aqueles que bem conhece, na perspetiva de captação de
dividendos. Recusa assim que “os seus”, fruto da interioridade, sejam
catalogados através de qualificativos pouco recomendáveis e aceitáveis, valorizando
a simplicidade e a autenticidade que vão rareando.
Há, sem hesitação, uma genuína e inabalável defesa
das origens, das marcas que o/nos sustentam, que muitos camuflam em nome das
vaidades ou ambições desmedidas. Não é o seu caso. A crítica ou o comentário
político estão assim muito presentes, implícita ou explicitamente, nos textos,
área aliás em que se sente muito à vontade fruto de uma experiência vivida. Temas
que aborda ora com elevada erudição ora com simplicidade, envolvidos com ironia
e humor que desconcertam qualquer leitor ou que, pelo menos, não o deixa
indiferente, levando-o, vezes sem conta, ou as que forem necessárias, a esboçar
sorrisos ou risos, impelindo-nos a novas leituras, as que se seguem no livro. O
retrato impressionista, consequência deste seu apego à terra, mantém a sua
presença nesta obra, muito em particular quando fala da sua serra (Serra da
Estrela).
Não restam dúvidas sobre a
inegável capacidade literária de Mário Jorge Branquinho, porque não há como
negá-la perante a materialização alcançada, sem nunca abandonar a sua premissa,
a sua palavra de ordem ou desordem: inquietação. E sem que com isto queira ou
ouse chegar a algum lugar, mas tão só divagar, despertar consciências, libertar,
para depois… não sair do lugar, a que sempre retornará nas suas viagens, umas
imaginárias outras reais.
O Mundo
dos Apartes é um notável conjunto de textos ou crónicas, que nos oferecem
de tudo um pouco, por vezes lugares comuns, e que nos impelem a mais leituras.
Como diria o autor “palavra de honra” que é verdade! Lembra a obra, aparte as
especificidades de cada um, de Jean-Paul Sartre, consubstanciada no seu livro As
palavras, texto autobiográfico, de um estilo inconfundível, mas igualmente
inebriante, que nos aponta o caminho da crítica livre. A forma como Sartre se
retrata, sem pudor e sem receio de mostrar as suas limitações, é fascinante: ”Virtuoso
por comédia, nunca me esforço ou constranjo: invento. Possuo a principesca
liberdade do actor que mantém o público em suspenso e aprimora o seu papel;
adoram-me, portanto sou adorável. Nada mais simples, se o mundo é bem feito.
Dizem-me que sou belo, e eu acredito. Há já algum tempo que trago no olho
direito a belida que me deixará zarolho e vesgo, mas por ora nada aparece.” É
esta forma simples, corajosa, despudorada, de falar de si como se fala dos
outros, com um humor refinado que
nos prende aos textos que carateriza alguns escritores nos quais incluo Mário
Jorge Branquinho sem qualquer hesitação.
A terceira e última obra de Mário
Jorge Branquinho, Estranhos Dias à Janela,
decorridos doze anos sobre a primeira, editada em 2015, é simultaneamente um
exercício de continuidade e de ampliação quanto às temáticas e aos horizontes
que o mesmo procura abordar e alcançar nas suas incessantes viagens de ida e de
volta, ainda que balizadas em termos de concretização por um hiato temporal
significativo. Horizontes focados através das várias “janelas” em que se
observa e observa o que o rodeia ou o que anseia, qual púlpitos prestes a
acolher quem tanto tem para dizer, de si e dos outros.
Temas como as causas públicas, a
sua visão sobre o homem e o seu quotidiano, continuam a ser objeto de análise e
crítica reflexiva. As suas gentes e os seus lugares nunca são no entanto olvidados,
aqui e ali, sem ordem de prioridade cronológica porque a eles sempre voltará,
por apelo e por afeto. Contudo, a sua análise crítica vai extravasando, nos
seus limites geográficos e temáticos, o âmbito puramente local ou regional, assumindo
um alcance mais global, acompanhando a inexorável realidade ditada pela
evolução tecnológica e como consequência das suas próprias intervenções e
experiências de vida, muito ligadas, nos últimos anos, ao mundo cinéfilo.
Veja-se o texto sob a epígrafe “E tudo mudou”.
A inquietação continua a manter a
sua centralidade, perpassando todos os textos como algo que é inerente à
personalidade do escritor e que ele assume sem qualquer hesitação. Entre o ser
e o parecer, o ir e o ficar, o ver e o fazer, tudo é algo e o contrário de si
mesmo. É notória, como o foi nas obras anteriores, uma personalidade dividida
entre um eu racional e um eu mais sensorial, este último das pulsões, dos
impulsos, dos desejos. O lado mais racional do autor impede-o de se lançar em
aventuras irrefletidas, de um só sentido, sendo materializado nas suas análises
críticas acerca do comportamento humano, no que concerne nomeadamente à falta
de ética, de empenho, de zelo, de ambição, no querer fazer bem. Veja-se o texto
intitulado “Brio”.
As diferentes realizações profissionais do
autor falam por si, consubstanciando os valores pelo mesmo defendidos e
interiorizados. Este lado mais racional coabita assim com um lado mais
emocional, sensorial, que o leva a partir e a regressar, a viajar sem sair do
lugar. Este último materializa-se nos impulsos, nos desejos assumidos mas que
apenas obtêm realização no seu imaginário, nas suas viagens, em que deambula,
vagueia, anseia, mas sabendo de antemão que é apenas isso. Estas são as viagens
sonhadas, pinceladas de apontamentos reais de outras viagens vividas e, mesmo
naquelas, define, consciente ou inconscientemente, o seu regresso, mesmo
naquelas, poucas, em que mostra de forma indelével o seu lado mais íntimo,
quando nomeadamente diz “…porque amanhã é outro dia e cada um irá à sua vida.”
Como é natural, a idade vai deixando
as suas marcas no autor ao tomar consciência e expressar o facto de que já
passaram muitos anos, sem que no entanto a inquietação refreie no seu vigor, no
seu ímpeto. As dúvidas acentuam-se porque tem consciência do efémero, do tempo
que urge e não espera pelas definições e pelas concretizações. “Meia-idade” é
disso testemunho. Nesta obra, o conteúdo e forma surgem congraçados de forma
harmoniosa, pois também o estilo evolui, se refina, para dizer o que se tem a
dizer com propriedade.
Em jeito de síntese, estamos
perante um autor marcado por uma personalidade não direi dual, mas constituída
por duas facetas igualmente marcantes, onde a racionalidade e a emoção se
interligam para resultar num equilíbrio essencial que nunca o deixa perder o leme
do seu barco, conduzindo assim o leitor por entre as ondas, as paisagens
fascinantes, a um porto seguro. Alguém
que vai desbravando terreno, indo sempre um pouco mais além, mas seguro de si. A
escrita, no seu estilo, na sua forma, é sem dúvida singular quando combina
magistralmente as palavras, sentindo o leitor o prazer da leitura, séria nos
propósitos, mas pincelada de um humor inebriante e até desconcertante.
Nenhuma das obras do autor deve ser
secundarizada. Todas elas nos permitem compreender ou apreender a globalidade
do pensamento do criador. Por exemplo, a personagem Micas, presente na primeira
obra, representa a segurança, o equilíbrio essencial, ainda que nas obras
posteriores se materialize de forma mais abstracta, conclusão que retiramos das
suas próprias palavras. Micas é o porto seguro, a origem e o fim de si mesmo,
pois o autor viaja muitas vezes sem sair do lugar ou a ele retornando como
condição da sua própria existência e sobrevivência. Destarte, o exercício de
apreensão da alma do escritor implica “viajar”
com ele, desde sempre, através das suas palavras, perceber as suas motivações,
o seu crescimento, porque a essência, que não precede a sua existência, está lá
no lugar mais recôndito e longínquo.
Compreender um escritor implica tomá-lo na sua
plenitude, contextualiza-lo nos seus diferentes lugares e tempos. Foi isto que
se procurou de alguma forma verter neste texto. Caberá a ele próprio, autor, e
aos leitores avaliar se foi alcançado o propósito.
O leitor espera agora do autor
outras viagens porque a isso o levou, criando uma grande expectativa que, diria,
bem fundada. Espera-se que a sua vontade e o seu empenho, demonstrados noutras
paragens, o levem a soltar-se através da escrita, contando “estórias” de tudo e
de nada, com alma e sabedoria, num estilo que lhe é próprio e que o leitor, que
já teve o privilégio de o ler, não mais esquecerá, desejando sempre poder
mergulhar e envolver-se nas suas palavras. Assim o esperamos!
Referências Bibliográficas
BRANQUINHO,
Mário Jorge, Sentido Figurado, 1996
BRANQUINHO,
Mário Jorge, O Mundo dos Apartes,
2002
BRANQUINHO,
Mário Jorge, Estranhos Dias à Janela,
Sinapis Editores, 2015
SARTRE,
Jean-Paul, As Palavras, Livros
Unibolso, 1964
CARMINO,
Fernando (trad.), a mais incerta das
certezas – itinerário poético de fernando pessoa-pierre hourcade, Tinta da
China, 2016
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