quinta-feira, 4 de agosto de 2016

O Real e o Fantástico de Luís Rente em Trancoso nos anos 60



“Entre o Real e o Fantástico – Memórias de Trancoso nos anos 60”, é o título da mais recente publicação de Luís Vieira Rente, onde relata episódios da sua infância e adolescência que viveu na terra de Bandarra.



Numa escrita leve e descontraída, às vezes com travo de sátira e humor subliminar, Rente inscreve recortes de prosa apurada e simultâneamente travos de storytelling, por entre uma narrativa corrida de histórias de sua vida enquanto jovem. Histórias de vida banais, em Trancoso, como em tantos lugares recônditos, de um país soterrado em expedientes de vida difícil, onde perpassam alegrias e feitos de quem se contenta com pouco.
Uma escrita escorreita, onde num quadro real se contemplam descrições de vizinhanças, andanças e locais míticos, colocando ênfase nos primeiros estudos e episódios de juventude de Rente, para quem a origem do apelido contínua envolta em mistério.
Nesta escrita, entre episódios reais e outros tantos disfarçados de fantásticos, espreita a hilariante descrição de episódios de vida simples, onde pontuam pessoas e lugares que marcaram a época. Quem é de Trancoso e tem mais de quarenta, revê isso mesmo, lugares e pessoas. Quem não é, como eu, entra num universo de histórias encantadoras. Simples episódios, como as que rodam à volta da Pacheca, o autocarro da Companhia Manuel Pacheco, que diariamente fazia o percurso Lamego – Guarda e retorno, onde iam e vinham encomendas, sobre o olhar atento do cobrador, ”um homem honestíssimo, o senhor Araújo de seu nome”.
Ingredientes bastos, entrecruzando entre os tempos livres, o desporto e o clube da terra, as peripécias e os jogos, os homens que passaram e fizeram história, ou as mulheres simples e influentes na vida da vila, como a cabeleireira, a modista ou a professora. O café, lugar de encontro e afetos, o Senhor da Pedra, altar de celebrações da Primavera e deambulações diversas.
Na segunda parte do livro, entra o fantástico onde resultam “personagens de recriação romanesca, vagamente inspiradas em figuras reais”, como o autor alerta, redundando em “coincidências fortuitas” com a realidade.
Por onde se deambula pelo Louva-a-deus, descrevendo-se o “Turinho” barbeiro; o “bom vivant” do Sargento; a Chefe dos Correios “senhora esmoler”, de grande dedicação e amor à arte; o Ângelo da Fonseca, outra figura típica e conhecida por feitos e desventuras, ou o Manel Sampedro, que tivera uma vida faustosa, entretanto dissipada. As descrições em torno do Zézinho Pombal, funcionário público, que se reformou da máquina de escrever e do ofício com o surgimento dos computadores; o Bitobá, considerado “um tipo porreiro”, sem horário para “despegar” do trabalho ou o Artur que sonhava ter uma Florett, um brinco de moto que acabou por ter, e perder mais tarde, com a própria vida, debaixo de um camião.
Assim se lê e se percebem episódios da vida de Rente na infância e juventude, como quem lê histórias simples de uma vila, numa escrita escorreita, leve e fresca, por entre o real e o fantástico descritos e separados.
Resta acrescentar que Luís Vieira Rente, embora nascido no Brasil (1956), viveu a sua infância e adolescência em Trancoso. Vive em Seia desde 1982, onde é professor do quadro de um dos agrupamentos de escolas da cidade. Licenciou-se em História (1979) e concluiu Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses (2003) com dissertação editada pela Câmara Municipal de Seia “O Marcelismo e o 25 de Abril vistos em dois jornais locais – Subsídios para a história recente de Seia (1968- 1975)”.

Mário Jorge Branquinho
Jornal Terras da Beira, 4 de Agosto de 2016








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