“Entre o Real e o Fantástico – Memórias de Trancoso nos anos
60”, é o título da mais recente publicação de Luís Vieira Rente, onde relata
episódios da sua infância e adolescência que viveu na terra de Bandarra.
Numa escrita leve e descontraída, às vezes com travo de
sátira e humor subliminar, Rente inscreve recortes de prosa apurada e simultâneamente travos de storytelling,
por entre uma narrativa corrida de histórias de sua vida enquanto jovem. Histórias
de vida banais, em Trancoso, como em tantos lugares recônditos, de um país
soterrado em expedientes de vida difícil, onde perpassam alegrias e feitos de
quem se contenta com pouco.
Uma escrita escorreita, onde num quadro real se contemplam descrições de vizinhanças, andanças e locais
míticos, colocando ênfase nos primeiros estudos e episódios de juventude de
Rente, para quem a origem do apelido contínua envolta em mistério.
Nesta escrita, entre episódios reais e outros tantos
disfarçados de fantásticos, espreita a hilariante descrição de episódios de vida
simples, onde pontuam pessoas e lugares que marcaram a época. Quem é de
Trancoso e tem mais de quarenta, revê isso mesmo, lugares e pessoas. Quem não
é, como eu, entra num universo de histórias encantadoras. Simples episódios,
como as que rodam à volta da Pacheca, o autocarro da Companhia Manuel Pacheco,
que diariamente fazia o percurso Lamego – Guarda e retorno, onde iam e vinham
encomendas, sobre o olhar atento do cobrador, ”um homem honestíssimo, o senhor
Araújo de seu nome”.
Ingredientes bastos, entrecruzando entre os tempos livres, o
desporto e o clube da terra, as peripécias e os jogos, os homens que passaram e
fizeram história, ou as mulheres simples e influentes na vida da vila, como a
cabeleireira, a modista ou a professora. O café, lugar de encontro e afetos, o
Senhor da Pedra, altar de celebrações da Primavera e deambulações diversas.
Na segunda parte do livro, entra o fantástico onde resultam “personagens
de recriação romanesca, vagamente inspiradas em figuras reais”, como o autor
alerta, redundando em “coincidências fortuitas” com a realidade.
Por onde se deambula pelo Louva-a-deus, descrevendo-se o
“Turinho” barbeiro; o “bom vivant” do Sargento; a Chefe dos Correios “senhora
esmoler”, de grande dedicação e amor à arte; o Ângelo da Fonseca, outra figura
típica e conhecida por feitos e desventuras, ou o Manel Sampedro, que tivera
uma vida faustosa, entretanto dissipada. As descrições em torno do Zézinho
Pombal, funcionário público, que se reformou da máquina de escrever e do ofício
com o surgimento dos computadores; o Bitobá, considerado “um tipo porreiro”,
sem horário para “despegar” do trabalho ou o Artur que sonhava ter uma Florett,
um brinco de moto que acabou por ter, e perder mais tarde, com a própria vida,
debaixo de um camião.
Assim se lê e se percebem episódios da vida de Rente na
infância e juventude, como quem lê histórias simples de uma vila, numa escrita
escorreita, leve e fresca, por entre o real e o fantástico descritos e separados.
Resta acrescentar que Luís Vieira Rente, embora nascido no
Brasil (1956), viveu a sua infância e adolescência em Trancoso. Vive em Seia
desde 1982, onde é professor do quadro de um dos agrupamentos de escolas da
cidade. Licenciou-se em História (1979) e concluiu Mestrado Interdisciplinar em
Estudos Portugueses (2003) com dissertação editada pela Câmara Municipal de
Seia “O Marcelismo e o 25 de Abril vistos em dois jornais locais – Subsídios
para a história recente de Seia (1968- 1975)”.
Mário Jorge Branquinho
Jornal Terras da Beira, 4 de Agosto de 2016
Sem comentários:
Enviar um comentário