Intervenção do Presidente da Câmara de Seia
Carlos Filipe Camelo
Comentário
Carlos Filipe Camelo
Fui convidado para
convosco partilhar a apresentação do livro “Estranhos Dias à Janela”, do Mário Jorge.
Sabia que me seria
pedido para nesta noite proferir algumas palavras.
Por isso, e ao usar da
palavra nesta cerimónia,
posso correr o risco de, no vosso pensamento, e aprioristicamente, aqui ou ali, ser acometido de alguma tendenciosidade
ou parcialidade, dada a relação de forte
amizade que cultivo com o autor..
No entanto, mesmo
correndo esse perigo, aceitei, como aliás o prova a
minha presença aqui.
Devo-o ao respeito e
consideração que tenho
pelo Mario, mas também
por todos aqueles que acharam por
conveniente presenteá-lo com a sua
presença na noite de
hoje.
Como todos sabem tenho
com o Mário Jorge
privado de forma diária, muito de
perto, há cerca de 30
anos.
Têm sido, como todos possamos estar a pensar, e como
costumo afirmar, anos de complementaridades e de cumplicidades, nas muitas ações consigo partilhadas.
É sabido que a
identidade de cada um de nós se gera num recipiente onde diversos ingredientes
se misturam mais ou menos harmoniosamente, independentemente da ordem em que os
possamos citar: a família, a terra,
os amigos, a cultura, a profissão, os valores,
o respeito pelos costumes e tradições, as motivações fundamentais de uma vida, a busca da verdade
sobre si próprio.
Perante nós temos uma pessoa serrana, do Sabugueiro, das
Beiras e Serra da Estrela, numa terminologia muito atual, de origem familiar de
cultura clássica, pessoa
firme e convicta dos seus ideais, pródiga em
amizades duradouras, amante da vida e do respeito pelo próximo.
São, pois, muitas as dimensões observadas que nos oferece a sua personalidade
e que dá sentido à sua vida onde encontrei, em continuidade, o
sorriso, a amizade, o conselho, a disponibilidade, a solidariedade, a
seriedade, a camaradagem e o altruísmo.
No entanto, e para além de tudo, todos aqui na sala conhecerão, certamente, o autor, da sua relação com a escrita, na imprensa, no cinema e nas
artes, na cultura, no associativismo, na política ou na economia social.
Não vou por isso prender-me em mais considerações diretas relativamente ao Mário Jorge…
Antes, e como é meu hábito e
preocupação, lembrar-vos que são momentos
como este, que o nosso concelho produz felizmente de forma abundante, nas mais diversas áreas, que nos
inspiram a celebrar a nossa comunidade e a assinalar as suas virtuosidades.
No fundo, evidenciar
aquilo que temos de genuinamente bom: a capacidade e o conhecimento das nossas
gentes, das nossas pessoas. Elas são sem dúvida o nosso maior ativo, porque despertam a
energia cívica e social
do nosso Concelho.
E o Mário Jorge é, sem dúvida, uma dessas pessoas singulares, que
contribuem, com o seu empenho, para o crescimento e afirmação da nossa terra.
O seu percurso cívico, marcado por uma cidadania ativa é, de resto, bem revelador e um exemplo que é replicado um pouco pelos diferentes setores da
nossa comunidade, que permitem que o Concelho se mantenha na linha da frente,
reafirmando, simultaneamente a sua identidade.
Ao autor, os maiores êxitos,
pessoais e profissionais saldado com um abraço forte e solidário do tamanho da nossa Serra da Estrela.
Muito
Obrigado a todos.
Comentário
de Maisa Antunes *
Estranhos dias à janela
dá a ideia de abertura, uma abertura desafiadora, porque é preciso vencer o
desafio de olhar sem culpa, e a astúcia de perceber uma saída aventureira, uma
saída que quebra convenções [no sair], torna-se preciso arriscar um pulo para
sair, ou arriscar-se assumindo outros papéis para olhar, para olhar-se, e
encontrar este estranho que há em nós.
O
livro traz a perspectiva de estar na fronteira entre o distante e o íntimo. Estranhos dias à janela contempla o fora
para ver o que estar dentro. O ritmo das palavras com seus enunciados trazem os
contrários sem estabelecer dicotomias, mas a sensação de incompletudes de
complementaridade – quem é o outro que vejo? Eu próprio? E assim se torna um
exercício de reflexos, um espelho.
É
a janela do inesperado, e da espera paciente...
Estranhos dias à janela
– Uma janela que abre fendas na memória para acessar as distâncias, com
intimidade, e assim nos leva ao poema pessoano “navegar é preciso viver não é
preciso”.
De
cada janela em diferentes lugares do mundo: ruminações de perguntas, de
questões de todos nós, respostas internas que generosamente inclui o outro, do
outro lado da janela.
Estranhos dias à janela
é uma janela ampla que se transforma em varanda e nos oferece um lugar para
sentar... para tiramos “a pedra do sapato” e arrumarmos o pensamento.
Estranhos dias à janela
convoca filósofos/poetas que através da perfeição literária e poética expõem a
imperfeição humana. E assim este livro nos coloca na ciranda da vida, trazendo
as reflexões do quem somos e as ilusões que nos salvam.
Uma
janela que é retrato, e sendo retrato revela-se também um auto-retrato. Assim
este livro parece uma autobiografia de todos nós, digo, de cada um de nós.
*Maisa
Antunes é
doutoranda em Pós-Colonialismos e Cidadania Global – no CES – Centro de Estudos
Sociais, da Universidade de Coimbra, com o projeto “A arte e a educação”; é
colunista do Escrítica (www.escritica.com); e do Cidade do Anjo
https://cidadedoanjo.wordpress.com; professora do Departamento de Ciências
Humanas - Juazeiro, UNEB – Universidade do Estado da Bahia – Brasil.
Antevisão,
de Sérgio Reis *
Doze anos decorridos sobre a
publicação de “O Mundos dos Apartes”, fazia já falta um terceiro livro de Mário
Jorge Branquinho, reunindo textos recentes, inéditos e dispersos, alguns dos
quais publicados no seu blogue, Seia Portugal. Longe de ser uma mera coletânea
de textos avulsos, “Estranhos dias à janela” reafirma o autor como perspicaz
observador crítico do seu tempo e dos lugares, partilhando generosamente com o
leitor o prazer da escrita e o seu entendimento do mundo – no sentido em que
Kafka gabava a orientação recebida do seu amigo Oskar: "Tu eras para mim uma janela através da qual podia ver as ruas.
Sozinho não o podia fazer." (Franz Kafka, Carta para Oskar Pollak).
Os últimos anos, de crise
económica e aflição social, impuseram temas e reflexões a que Mário Jorge
Branquinho não podia ficar alheio, como cidadão responsável e interventivo,
preocupado com as condições de vida das gentes da sua terra, região e país. No
entanto, não se procure nestes textos aguilhões panfletários para além da
reflexão crítica sobre o contexto em que se desenvolve o atual mal-estar social
e político, em parte provocado pela crise económica mas também fruto da
excessiva confiança geral no funcionamento das instituições democráticas.
“Estranhos dias” que cada qual pode observar, analisar e comentar do seu ponto de
vista, da sua “janela”, ou de várias perspetivas e outras tantas “janelas”
abertas pelos jornais, televisão e Internet para um “país em bolandas”, com toda a gente “a querer pular a cerca da inquietação” (O mundo em bolandas). Basta
recordar a importância da imprensa na vida de Mário Jorge Branquinho (fundador,
administrador, diretor e colaborador de jornais locais e regionais) e a
relevância que concede à escrita, além da sua paixão pela fotografia, para
exprimir ideias, sensações e sentimentos, integrando-se pelo mérito no colégio
literário senense e na história recente da cultura em Seia.
O que diferencia principalmente
este livro dos anteriores, cuja leitura se recomenda para melhor apreciação do
caminho percorrido, é a inegável dimensão poética da escrita. Uma escrita
apurada, culta, que se desdobra em significados e sentidos. Uma escrita “em
arco”, inspirada e inspiradora, cuja musicalidade faz lembrar o jazz poetry e o rap, ecoando ao longo da frase e da superfície do texto. Induzindo
viagens, pelas “janelas de emoções” e muito mais além, até ao âmago do
problema, ao “busílis da questão”, o “centro da periferia”. “Escrever em arco é partir, andar por lá, em
aventuras de escrita (…) e voltar são e salvo, sem hipotecas narrativas. (…) É
ir a muitos mundos e voltar (…), tantas vezes sem sair do lugar, sem estagnar!”
(Escrever em arco). Viagens no sentido de incursões, observações avançadas,
visitações, mas também “desviagens” – esses desvios à vista que permitem
encarar novos e velhos problemas de perspetivas inusitadas, emboscando-os mais
à frente na curva do tempo, para os resolver, muitas vezes sem querer ou por
acaso (como no serendipismo?) pois “nem
sempre vamos aonde queremos” (Partir daqui, a partir de agora). Mas quando
voltamos de uma viagem, somos ainda nós ou já outra pessoa? Para Miguel Torga,
viajar “é deixar de ser manjerico à
janela do seu quarto e desfazer-se em espanto, em desilusão, em saudade, em
cansaço, em movimento, pelo mundo além" (Diário, 1937) e Mário Jorge
Branquinho conclui justamente que “só não
muda quem não acompanha nem quer sair do lugar” (E tudo mudou).
As fotografias que o autor
articulou com os textos, pontuando o livro, permitem traçar o mapa das suas
aventuras periféricas, como cidadão do mundo, “no cruzamento com outros, em ruas plácidas, ou em caóticos labirintos”
(Inventário de sentimentos), captando momentos específicos e não apenas a
memória dos lugares. Espreitando pela janela da máquina fotográfica as janelas
do mundo, através das quais se avistam paisagens humanas, paraísos artificiais
e outros abismos, “o paradoxo ilusionista
em que se vive” (Olhar langue), os “novelos
górdios” do nosso tempo e não apenas do nosso espaço e lugar. Os artistas, grosso modo, pintam as janelas nas
fachadas, como olhos na cara das casas, mas os fotógrafos têm essa vertigem
especial de perseguir imagens através de vidros, lentes de máquinas e janelas,
aproximando-se imprudentemente da realidade – e por isso a fotografia é mais
objetiva que a pintura. Mário Jorge Branquinho é fotógrafo amador (no mais
autêntico sentido do termo “amador”, ou seja, “aquele que ama”) com diversas
exposições e prémios no currículo, e as imagens soberbas que pontuam os espaços
mentais do livro vão muito além do simples registo fotográfico ilustrativo,
espicaçam a imaginação e a interpretação, desdobram-se em sugestões de
narrativas.
Cada uma dessas imagens vale autenticamente por mais de mil
palavras, procurando as legendas nas frases dos textos, tudo articulado com a
engenharia possível numa obra desta natureza. Dois livros num só, como dois
autores num só, que se completam e esclarecem mutuamente – um pouco à
semelhança de Fernando Pessoa, poeta admirado por Mário Jorge Branquinho, que o
evoca discretamente ao longo de “Estranhos dias à janela”.
O livro termina com palavras de
incentivo, encerrando com a curiosa sugestão do fim de ano em agosto, um mês de
calmaria propício a balanços, para começar do zero depois das férias, frescos e
com ganas de refazer tudo um pouco melhor. “Afinal,
porque é que não vale a pena, se nunca houve tanto progresso?” (O estado
psicológico da nação. Pela positiva). “Em
tempo de crise, de falta de muito, sobra a criatividade e a ousadia de fazer
mais para fazer sentido” (Balanços). Assim seja.
*Professor e artista
plástico, de Seia
À janela amanhece
por Alexandre Sampaio*
à janela amanhece
e o dia regressa
num turbulento esplendor
as sombras recolhem aos pés
primitiva casa de penhor
furtivas e insinuantes
e toda a noite trémula
orvalha
amanhece
irremediavelmente
a mesma luz cintila
e refracte
mas não reconheço em que tempo incide
a janela medeia o silêncio atraiçoado
e já o rouxinol que o canto segue
também tu querias que eu fosse pássaro
nascente
água desmedida que sobe ao olhar
e se desmancha sobre a mesa
mas partiste
ainda Endimião dormia
na primeira névoa
hiberna ao longe o estio da cidade
e são estranhos os dias à janela
que pairam sem florir
por isso o centeio dança com as mãos
no vidro frio da retina
e quando negras nuas se descobrem
são já as vozes dos camponeses
que as colhem
é o novo dia coroado
novo mastro peitoril
o vento ondula docemente o milheiral
(ressoa um sino na memória)
o pinhal emerge sumptuoso
(brisa de rosmaninho sobre a pele)
o rio espreguiça o seu ofício líquido
(verbo que humedece)
desenho no mapa embaciado
efémeros continentes
novas atlântidas e constelações
gestos e rotinas
que a claridade consome
gente que ri
gente que vê
gente que dá
gente que crê
gente que dorme
gente que morde
gente amontoada
a paisagem sua
abro a janela
(e digo-me adeus)
* Alexandre Sampaio, encenador,
performance
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